Introdução
O presente trabalho baseia-se num
episódio denominado de ‘La noche del dia de los muertos’ pertencente
a uma série documental produzido pela produtora ‘Plano Médio’ e difundida pela
televisão boliviana, denominada de ‘Bolívia Siglo XX’ apresentada
e narrada por Carlos D. Mesa. E que ilustram bem a Bolívia durante o período de
Guerra Fria, e da influência estadunidense na política interna dos países
sul-americanos, no que concerne a impedir a ascensão de movimentos e partidos
de esquerda, fazendo com que a Bolívia fosse na altura uma democracia
intermitente, ou seja, que apesar de eleições livres, a democracia fosse
constantemente interrompida por golpes militares reacionários, mantendo o
controlo político e social nas mãos do exército.
Muitos golpes de estado foram
efetuados na Bolívia, desde os anos 50 do século XX, sentindo-se mais
acentuadamente desde 1964 até 1980, com o último grande e sangrento golpe
militar, do General Garcia Mesa, que juntamente com outros membros da cúpula
das forças armadas que estavam implicados com o narcotráfico.
Os antecedentes do golpe militar de
Natusch Busch, foram o impasse político gerado por um empate técnico nas
eleições presidenciais de 1979, os candidatos Hernan Siles Suazo da UDP e
Victor Paz Estensoro da aliança MNR-PDC, empataram, a constituição impunha que
em caso de empate técnico, o Presidente
da República seria escolhido por uma eleição indireta no Parlamento entre os
três primeiros colocados, como não se encontrou uma solução parlamentar, gerou-se
um impasse político denominado de “Empantanamiento”
(atolamento); foi então sugerido por um deputado da ADN, que fosse eleito pelo
Congresso de Deputados o Presidente do Senado Walter Guevara Arze do MNR, como
Presidente Interino, tendo tomado posse a 8 de agosto de 1979 e governou sem
apoio partidário até ao golpe militar de 1 de novembro de 1979 na véspera do
dia de finados.
Palavras-Chave: Ditadura Militar, “Empantanamiento” (atolamento), Golpe de
Estado, Guerra Fria, Hegemonia política, Instabilidade política.
1 – Objetivo
do presente estudo
Tal como indicado em parte na
introdução, o objetivo deste trabalho, é compreender em que medida a Bolívia
funcionava politicamente durante a Guerra-Fria e como se reestruturou no
Pós-guerra fria, por um lado verificamos um período de Golpes de Estado, que
tinham como intenção o esmagamento da democracia e em particular das forças de
esquerda, quer pela ingerência estadunidense com o apoio dado a governos
ditatoriais como o do General Hugo Banzer Suarez, que durou sete anos, de 1970
até 1978.
A situação boliviana não foi um
caso isolado, desde 1964 até 1982 o país viveu em regimes militares, com alguma
intermitência democrática, mas sempre com a supervisão militar, de igual modo o
mesmo se passou em toda a América do Sul com as ditaduras militares, na
Argentina com Jorge Videla desde 1976 até 1983, no Brasil com o Regime militar
brasileiro de 1964 a 1985, no Chile de Pinochet de 1973 até 1990, Paraguai
desde 1954 a 1989 com Alfredo Stroessner, no Perú desde 1968 a 1980, Uruguai de
1973 a 1984, tratava-se de uma época em que a política estadunidense para a
América Latina era a de fomentar ditaduras, através de um acordo entre vários
países sul-americanos e a CIA, denominado de ‘Operação Condor’ do qual a
Bolívia fazia parte.
Outro aspeto importante que
pretendemos abordar neste estudo, usando o impasse pós-eleitoral de 1979, é a
importância de uma norma constitucional, que regule o sistema político, bem como o sistema eleitoral, que venha
a permitir e garantir a governabilidade e a Estabilidade Política
em caso de empates técnicos, como foi o caso da Bolívia, em que os candidatos
não disputavam a eleição em duas voltas, gerando-se uma crise política
denominada de “empantanamiento” que significa atolamento, e reflete bem
a situação política da Bolívia e da recém criada democracia.
Incluímos neste trabalho, a análise
de três fenómenos vigentes na política boliviana nos anos 60, 70 e 80 do século
XX, a fim de compreendermos a influência negativa de uma Ditadura Militar
e da ingerência do exército na vida política e na economia da Bolívia, as
consequências negativas da ligação de políticos e militares com o narcotráfico
e a violência política, como o assassinato de Marcelo Quiroga Santa Cruz, líder
do PS-1, professor universitário, escritor e cineasta, que foi assassinado
durante o golpe de Estado de 1980 perpetrado pelo General Garcia Mesa ao
derrubar a Presidente Lídia Gueiler.
Por fim, não podemos deixar de
focar a transformação da Bolívia no Pós-Guerra fria, em particular com as
reformas políticas levadas a cabo pela Hegemonia política de Evo
Morales e do MAS, bem como, iremos abordar a Importância da Bolívia no contexto
internacional, em particular na América do Sul, deixamos uma ideia dos
principais objetivos para a Política Externa boliviana, nomeadamente a
reivindicação da recuperação da sua costa marítima de Antofagasta, perdida na
Guerra do Pacífico com o Chile tal com referido por Herbert S. Klen no seu
livro “A Consise History fo Bolívia”
(KLEIN, 2011).
Por fim, resta-nos dizer, que para
além do Contexto particular deste capítulo vivido na história da Bolívia,
faz-se necessário também uma clarificação descritiva, como que sirva de
ilustração explicativa sobre o pais, dando uma visão ampla de vários aspetos
como as várias etnias, um resumo histórico, a economia, a cultura, complementados
com dados estatísticos que poderão ajudar-nos a compreender melhor a realidade
sociopolítica da Bolívia.
2– Conceitos
Antes de mais, é imperioso que se
deixe aqui expresso alguns conceitos que são importantes para o tema deste
estudo, vamos assim abordar os conceitos referentes a Ditadura Militar,
mais em concreto, no que se passou na América Latina durante a Guerra Fria, não
esquecendo que de igual modo são importantes os conceitos políticos de Instabilidade
Política, para compreendermos o caso boliviano, numa continua e latente tensão
político-militar exemplificado neste estudo, e iremos abordar o conceito de Hegemonia
quando referente à ascensão do MAS ao poder com Evo Morales.
a)
Ditadura Militar – Existem três
tipos de ditaduras na América do Sul, e que têm diferentes naturezas e
objetivos, afirma Miguel Rojas Mix; há as Ditaduras Bananeiras, que
fundamenta-se na articulação entre a classe oligárquica e o capital
estrangeiro, numa economia de gado e bananas; há ainda as Ditaduras
Positivistas, que são as que se opõe à anarquia, impondo uma política
económica liberal, são ditaduras que surgiram no final do século XIX e por fim,
as Ditaduras Militares integristas, que se constituem como um projeto
articulado de Defesa Nacional, mas sem o culto da personalidade como nos
regimes fascistas de Salazar, Franco, Mussolini; assim o ditador é apenas o
Exército no seu todo, atuando em prol de um bem maior que é a Segurança
Nacional, (Barbian, 2008). Escusado é dizer, que as liberdades fundamentais
ficam proibidas.
b)
Instabilidade
Política – A estabilidade é um elemento fundamental para o bom funcionamento da
organização política de um Estado soberano, é precisamente devido a uma
especificidade da Constituição boliviana que se gerou o impasse político do “Empantanamiento”,
um período de grande instabilidade, pelo facto de não permitir a eleição
presidencial a duas voltas, para que um dos candidatos obtivesse mais de 50%
dos votos. O Conceito de Instabilidade política é segundo Carlos Pacheco, algo
abrange, num leque variado de definições
como “incapacidade de governar”, ou ainda a “falta de rumo”, situações de
”tumultos”, e um despoletar de “tensões”, “mudanças
sucessivas de governos”, “mudanças no interior do próprio Governo” ou o
“confronto político permanente”, entre outros, no caso particular da Bolívia
podemos aferir que se trata de tensões em diferentes níveis e de vários
fatores, como as questões ideológicas entre a esquerda e a direita, de um lado
com a oligarquia, o exército, o narcotráfico, do outro os indígenas, os
trabalhadores, sindicalistas e intelectuais, condições que no tabuleiro da
Guerra Fria, tornaram-se verdadeiramente potencializadoras de golpes de Estado.
Alberto Alesina, argumenta que “instabilidade
política é definida como a propensão para uma mudança no Executivo” (Pacheco, 2012).
c)
Hegemonia
política – Este é um conceito que carece de um maior cuidado, Hugues Portelli,
afirma no seu livro “Gramsci e o bloco histórico”, que Gramsci foi buscar aos
textos de Lenin, as bases para formular o seu conceito sobre hegemonia, que é para
ele, de uma forma síncrona, a ‘direção’ e a ‘dominação’ da sociedade, mais
precisamente da sociedade civil, e que claramente é marcado pela ideia de “Base
Social de Classe”, entendia que as classes que pretendem dominar, buscam
alianças com outras classes para aumentar a base social da direção. Foi
precisamente isto que Evo Morales conseguiu fazer ao chegar ao poder na
Bolívia, aumentando a base social das populações indígenas, o que lhe permitiu
uma reforma política de grande envergadura na criação de uma nova ordem
República.
3 - Contextualização
Este trabalho foca um período
conturbado da história da Bolívia, e carece de uma clarificação de antecedentes
históricos, sociais, políticos e até da conjuntura internacional da altura,
para que possamos compreende-lo, nesse sentido, deixamos aqui uma descrição
concisa da história, da geografia física, humana e política, bem como da
economia, cultura e sociedade atual.
História da Bolívia - Inicia-se ainda no
período pré-colombiano, acredita-se que já havia sido habitada a partir de
20.000 AEC, muito mais tarde, em 3.000 AEC era iniciada a prática da
agricultura no espaço onde hoje é a Bolívia quanto à produção de metal, deu-se
aproximadamente 1.500 AEC.
A civilização ameríndia Tiwanaku foi a primeira a surgir no
território no século II AEC, mais precisamente ao redor do lago Titicaca, e
consta que durou até 1200 EC, o fim da civilização tiwanakus proporcionou o
surgimento de sete reinos dos Aymaras, também ao redor do lago Titicaca.
Em 1438, segundo o mesmo autor, afirma que o altiplano
boliviano fora integrado ao Império Inca, na região da cordilheira boliviana
denominada de Colasuyio, os incas passaram a impor o Quechua como idioma
oficial, assim permaneceu até à chegada dos colonizadores espanhóis. Em 1533
com o ataque e massacre por Francisco Pizarro, destruindo a cultura indígena com a captura e assassinato
do Sapa (imperador inca) Atahuallpa, na cidade de Cajamarca (atual Peru) com o
argumento dos castelhanos de que o líder inca havia recusado a Bíblia cristã (Gumucio,
2016).
Posteriormente a isso os castelhanos colocaram o território
boliviano no Vice-reino do Perú, e posteriormente no Vice-reino do Rio da
Prata.
A partir de 1809 inicia-se a luta pela independência,
tornando-se livre de Espanha em 1825 por força da liderança de Simon Bolivar,
daí o nome de Bolívia em homenagem ao seu libertador, alguns anos mais tarde a
Bolívia separa-se do Peru, inicialmente com uma área geográfica muito maior do
que hoje tem, tendo vindo a perder território quer pela venda, quer por perda
em disputas militares, tal como a zona costeira de Antofagasta, que perdeu para
o Chile em 1879 na Guerra do Pacífico.
Já no século XX perde o território do Acre
para o Brasil, a região do Chaco para o Paraguai, tal como pode-se observar no
mapa ao lado, para agravar a situação, as primeiras décadas foram de grande
instabilidade política.
Em 1942, Victor Paz Estenssoro funda o MNR, um partido de
cariz nacionalista de Centro-Esquerda (hoje de Centro-Direita), que em 1951
vence as eleições presidenciais, todavia o exercito não reconhece os resultados
e anula as eleições, Estenssoro exila-se em Buenos Aires. Em 1952 Hernan Siles
Suazo, inicia sangrentas lutas e põe em marcha a Revolução Boliviana, Paz
Estenssoro regressa e sobe à presidência, avançando com reformas no regime
político e na organização económica, todavia, em 1964 após a reeleição de
Estenssoro, os militares tomam o poder e inicia-se o período Golpista que
institui intermitentes Ditaduras militares, sempre apoiadas pelo governo dos
Estados Unidos ao abrigo dos acordos da Operação Condor, até ao ano da plena
democratização 1982. (Freire, 2008).
Geografia e população da Bolívia – Situado na cordilheira
dos Andes na América do Sul,
tem no total atualmente sem saída para o mar, tem
apenas acesso ao lago de Titicaca com 8300 km2 e a uma altitude de 3821m. De
acordo com dados oficiais do INE, o país tem cerca de 11.216.000 hab, na
maioria ameríndios, com uma pirâmide populacional jovem; os idiomas oficiais
são o espanhol, quéchua e aymara, entre outros dialetos indígenas.
Santa Cruz de la Sierra com 1.450.000 hab, é a cidade mais
populosa, situada no Departamento de Santa Cruz, seguem-se El Alto com 850 mil
e La Paz com 764 mil habitantes.
Governo e Organização Política – A Bolívia é uma
República Presidencialista, democrática e pluralista, com sistema legislativo
bicameral, com Câmara dos Deputados, e Senado, o país tem duas capitais, Sucre,
que é a capital constitucional é a sede do Poder Judicial, La Paz é a sede dos Poderes
Executivo, Legislativo e Eleitoral, sendo que neste país há o Supremo Tribunal
Eleitoral e é entendido como um poder político, administrado pelo OEP Órgão Eleitoral
Plurinacional.
A Bolívia faz fronteira
com cinco países, a Sul como o Paraguai e a Argentina, a Norte e Leste com o
Brasil, No Oeste com o Chile e a Noroeste com o Peru, divide-se em 9
Departamentos autonómicos, tal como no mapa
ao lado (informações sobre os Departamentos no anexo na página 22).
A Constituição Boliviana data de 2009 e emerge da ascensão e
hegemonia de Evo Morales e do MAS, contribuindo para uma maior coesão nacional,
integração das etnias ameríndias e permitindo a autonomia dos Departamentos, a
nível executivo e legislativo, mas não judicial, as autonomias foram uma
reivindicação dos departamentos do Leste, a fim de evitar o separatismo que se
verificara em tempos (Freire, 2008).
Economia da Bolívia – A economia conseguiu recuperar do atraso crónico, que
derivava da instabilidade política, dos golpes e dos conflitos armados que
flagelaram a Bolívia com muitas mortes, pobreza e isolamento do país, a
Estabilidade política. O país tem como principal atividade a extração mineira e
as exportações, tanto de gás natural, como de estanho, prata, petróleo. A moeda
é o Boliviano Bs dividido em 100
centavos, 1,00 € equivale a 8,45 Bs, O PIB é de 43 mil milhões de
dólares em 2019, a Renda per Capita é de 8,172 dólares no mesmo ano, a inflação
está controlada a 1,46% ao ano e a taxa de desemprego atinge os 4,4% da
população ativa.
4 – A intermitência golpista e a
democracia no fio da navalha
Não foi por acaso que Che Guevara
morreu em 1967 na Bolívia, lutando contra o que considerava ser um sistema
opressor, pois trata-se de um país com características sociopolíticas sui
generis, em particular durante a Guerra Fria e o contexto sul-americano de
ditaduras para conter o avanço esquerdista no continente.
Eduardo Galeano n seu livro
‘Mulheres’, fala de uma greve de fome ocorrida na Bolívia, por cinco mulheres
contra a ditadura de Hugo Banzer Suárez (1971-1978) e que abrangeu muitas
outras pessoas como o sacerdote Luís Espinal:
“– O inimigo principal, qual é? A
ditadura militar? A burguesia boliviana? O imperialismo? Não, companheiros. Eu
quero dizer só isso: nosso inimigo principal é o medo. Temos medo por dentro.
Só isso disse Domitila na mina de estanho de Catavi e então veio para La Paz, a
capital da Bolívia, com outras quatro mulheres e uma vintena de filhos. No
Natal começaram a greve de fome. Ninguém acreditou nelas (…);
– Quer dizer que cinco mulheres
vão derrubar a ditadura?
O sacerdote Luís Espinal é o
primeiro a se somar. Num minuto já são mil e quinhentos os que passam fome na
Bolívia inteira, de propósito. As cinco mulheres, acostumadas à fome desde que
nasceram, chamam a água de frango ou peru, de costeleta o sal, e o riso
alimenta-as. Multiplicam-se enquanto isso os grevistas de fome, três mil, dez
mil, até que são incontáveis os bolivianos que deixam de comer e deixam de
trabalhar e vinte e três dias depois do começo da greve de fome o povo rebela-se
e invade as ruas e já não há como parar isso. Em 1978, as cinco mulheres
derrubam a ditadura militar” (GALEANO, 1998).
Esta passagem do livro de Galeano
ilustra a Bolívia no período dos golpes militares, houve um período de
intervalo entre golpes, que foi a ditadura do General Hugo Banzer Suárez de
1971 a 1978, foi precisamente contra este governo que a Greve Geral foi
iniciada, culminando num inicio de abertura política, mas que não tendo ido
avante, acabou por degenerar em um golpe de Estado do General Asbun, com o
pretexto de restaurar a democracia. Em 1978 realizaram-se as primeiras eleições
livres a Presidência da República e o Parlamento.
Os resultados eleitorais do
sufrágio não dão a maioria a nenhum dos candidatos, e pela constituição boliviana,
não havendo segunda volta, o Presidente teria que ser eleito pela Camara dos
Deputados, todavia, nenhum dos candidatos havia conseguido o número de votos
necessário para ser eleito, gera-se um impasse político denominado de “Empantanamiento”,
ou seja a situação política estava num atoleiro.