A
Peça Auto da Lusitânia, da
autoria de Gil Vicente, escrita no Século XVI em 1531, e apresentada em 1532,
cujo trecho abaixo é uma das partes do respectivo Auto[1],
intitulada Todo o Mundo e Ninguém, estes são os nomes de dois personagens, o
primeiro representa um mercador, a maioria e a sua arrogância, o segundo
representa um pobre, a minoria, e a sua humildade, nos diálogos entre ambos, há
trocadilhos que mostram a natureza da alma humana no contexto social da época,
e que nos parece sempre tão atual.
Por
outras palavras, Gil Vicente faz neste ato da peça uma mordaz critica à
sociedade da época, a peça inteira que contém quatro atos, relata o nascimento
da Lusitânia filha de Lisbea e o Sol, no entanto quero focar apenas este diálogo
onde entram quatro personagens dois demónios, o Diabo Belzebu
que ordena que o outro demónio, Dinato (Pessoa
digna) escreva como em ata todo o diálogo entre os outros dois personagens,Todo o Mundo e Ninguém.
Entra Todo o Mundo, rico mercador, e
faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido
como pobre. Este se chama Ninguém e diz:
Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas[2] ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar[3].
Ninguém: Como hás[4] nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida[5]:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
sem mo Ninguém estorvar[6].
Ninguém: E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjear[7].
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano.
Dinato: Que me mandas assentar?[8]
Belzebu: Põe aí mui[9] declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
[1] Auto - Substantivo masculino, significa ato público,
narração escrita, peça dramática.
[2] Cousa - Substantivo feminino, objeto ou ser
inanimado, sinónimo de coisa. pl. cousas, bens.
[3] Porfiar - Verbo, significa Perseverar, insistir,
teimar, altercar, contender,
[4] Has - Verbo Haver, Sinónimo de ser ou ter, neste
caso equivale a "que nome tens"
[5] Garrida - Adjétivo. Sinónimo de Ressoada, badalada,
muito falada, agradável.
[6] Estorvar - Verbo. Causar estorvo a alguém, embaraçar,
atrapalhar, dificultar, impedir.
[7] Lisonjear - Verbo. Significa Louvar de forma afetada,
adular, bajular, agradar, honrar-se.
[8] Assentar - Verbo. Fazer sentar, sinónimo de firmar,
anotar, apontar.
[9] Mui - Adverbio. Diminutivo de Muito só empregado
antes de adjétivos.
Por Filipe de Freitas Leal
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